segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Educador cria pedagogia do saber popular


Cansado da ensinagem, Empreendedor Social 2007 extrapola a sala de aula e cria escola sob pé de manga
GABRIELA ROMEU
ENVIADA ESPECIAL A ARAÇUAÍ (MG)
Assim como "um certo Miguilim", personagem literário da obra de João Guimarães Rosa, o educador Tião Rocha, 59, descobriu a miopia ainda nos tempos de menino encapetado que perambulava pelas ruas de Santa Teresa, tradicional bairro de Belo Horizonte.
A "miopia" do mundo acadêmico mesmo só seria sanada mais tarde, nos anos 80. Decepcionado com o processo de "ensinagem", Tião pediu demissão do cargo de professor da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto) e, meses depois, criou o CPCD (Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento).
Era o início da transformação do professor no educador que criou a pedagogia da roda, tirou meninos da "UTI educacional", fez "oficina de cafuné".
Algumas dessas invencionices surgiram no sertão mineiro, o mesmo do pai de Riobaldo e Diadorim, de "Grande Sertão: Veredas", já lido e relido "umas 40 vezes" por Tião. E foi a paixão por Guimarães Rosa que colocou o educador na trilha das veredas de Curvelo (MG), denominada pelo escritor como a capital de sua literatura.
"Fui atrás dos personagens do Guimarães", diz o empreendedor, que, na fila do Funrural (antigo fundo de pensão), encontrou Manuelzão, vaqueiro inspirador do personagem homônimo da obra roseana.
Nas andanças pelo sertão, emergiram também personagens de outra história -bem mais real. Meninos nascendo e crescendo sem freqüentar escolas. E, em entrevista à rádio local, surgiu a questão-guia: "Será que é possível fazer educação sem escola?"
O desafio impulsionou o nascimento de uma escola debaixo de um pé de manga. "Escola" que prescindia de mesa ou cadeira, lousa ou giz. Mas tinha roda, início do processo de aprendizagem, mãe ou tio inseridos nas atividades, criança zanzando por todo o bairro, transformado em sala de aula.

Escola que anda

"É uma escola que anda", Tião ouviu de esguelha. A mãe de uma das crianças comentou com a outra: "Ô, comadre, ontem mesmo a escola passou na minha porta umas três vezes", conta o educador, com ritmo mineiramente pausado.
Nada tinha daquela escola da infância, quando seus questionamentos não encontravam acolhida na sala de aula. Tampouco a encontrava em casa, onde apanhava -com cinta, borracha ou vara de marmelo, podia escolher- por qualquer arte de menino. "Não existia alternativa a não ser a rua."
Na escola, nunca era ouvido. Certo dia, enquanto a professora contava uma história sobre reis e rainhas do "era uma vez", o garoto de sete anos levantou a mão e falou: "Professora, eu tenho uma tia que é rainha". E ouviu um "fique quieto, menino". Foi parar na diretoria.
Questionador, ele não entendia por que não estudava a trajetória de realezas como a de sua tia Etelvina, rainha do congado. "E quantas realezas não estão por aí?", pergunta o educador, enquanto olha pela janela as ruas de terra de Araçuaí.
Foi na busca por desvendar a história de sua dinastia que entrou no curso de história -virou professor. Dedicado, chegou a lecionar em um dos colégios da alta sociedade de Belo Horizonte.
Quando seguia o mesmo caminho dos mestres da infância, o aluno Álvaro Prates provocou o primeiro "clarão" depois que, inexplicavelmente, cometeu suicídio. Tião, que conversava com o rapaz horas a fio sobre revoluções e barricadas, não tinha idéia do motivo da morte do garoto de 13 anos.
É capaz que o menino tenha indicado os sinais (ou as "piscadelas"), mas o professor estava entretido demais em dar conta do conteúdo escolar. "Depois já não me interessava mais que os meninos soubessem tudo sobre a burguesia se eu não conhecesse a vida deles." E passou a ensinar e a aprender a partir da sapiência de Álvaros e Etelvinas.

Mineiro reescreve e amplia léxico educacional

DA ENVIADA ESPECIAL A ARAÇUAÍ
A recriação da roda, formada por Tião Rocha em uma escola debaixo de um pé de manga, avançou sertão adentro -alcançou sete Estados brasileiros- e atravessou o mar para desembarcar em Moçambique, na África. Mas essa foi apenas uma das primeiras invenções do educador mineiro.
Laboratório do CPCD, foi em Curvelo (MG) onde surgiram outras teorias calcadas no saber popular, como a pedagogia do brinquedo (educação a partir de jogos como a "damática", mistura de dama e matemática), a pedagogia do sabão (impulsionadora das fabriquetas, que produzem desde bonecas até móveis), a pedagogia do abraço (estimuladora do afeto).
Com seu habitual chapéu, vício herdado de um amigo e que diz que só troca quando quer pensar de um jeito diferente, o atleticano ("por sina") continuou engrossando seu dicionário de terminologias educacionais. Tião tem léxico próprio.
Assim, do encontro com gangues de jovens que se mutilavam no Laranjal do Jari (AP), criou a "oficina de cafuné" depois que um garoto perguntou: "Tião, como faço para conquistar uma moleca?" Foi a deixa para o educador colocar questões de sexualidade na roda.
Para resolver a falência da educação em Araçuaí, inventou uma "UTI educacional" em que "mães cuidadoras" (ou educadoras) fazem "biscoito escrevido" e "folia do livro" (biblioteca em forma de festa) para ajudar menino na alfabetização.
E ainda colocou em uso termos como "empodimento", após ser várias vezes questionado pelas comunidades: "Pode [fazer tal coisa], Tião?" Pergunta seguida da resposta certeira: "Pode, pode tudo".

FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/finalistas/2007-tiao.shtml 

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